bandeira de Mello

HISTÓRIA





O ateliê de Bandeira de Mello. Lugar de memória, de práticas e formação de mestres.


Angela Ancora da Luz - Escola de Belas Artes da UFRJ CBHA/ABCA/AICA/IHGRJ


O ateliê de Lydio Bandeira de Mello, situado nas Laranjeiras, Rio de Janeiro é um lugar de memórias superpostas em que o ensino da arte se liga às raízes do próprio aprendizado do mestre, na Escola Nacional de Belas Artes, e ao entendimento de que, sem desenhar não se pode pensar a forma. Esta consciência formou-se ao longo das mais de novecentas aulas de modelo vivo, em que estudou com os mestres Calmon Barreto, Carlos Chambelland e Edson Motta na ENBA até descobrir a magia do ateliê de Manuel Santiago, na Rua das Laranjeiras, que hoje é o seu próprio ateliê.

O ateliê resiste ao tempo e acumula vivências, podendo-se afirmar que se tornou um lugar de memórias superpostas.

Manoel Santiago viveu na Europa entre os anos de 1928 e 1932, pois recebera o prêmio de Viagem ao Exterior e fora estudar em Paris. Após retornar ao Brasil ele dá início a um projeto, já em 1934, pois trouxera consigo a planta de um prédio europeu em cuja cobertura estava previsto um espaçoso ateliê de artista. O edifício seria construído na Rua das Laranjeiras, e Manoel Santiago, como proprietário do imóvel, se instalaria na cobertura.

Quando, em 1952, André Lhote vem ao Brasil para ministrar um curso para artistas brasileiros, é no ateliê de Manoel Santiago que as aulas seriam dadas. Lydio Bandeira de Mello foi convidado, pelo mestre Santiago, a assistir o curso, na condição de ouvinte, e se deslumbra com aquele ambiente. A entrada se dá por um grande portão, à direita do prédio, pelo qual se atravessa um corredor ao ar livre, até encontrar, no final, à esquerda, a porta de acesso ao prédio. Chega-se a escada e se inicia a subida dos quatro lances da estreita escada de degraus um pouco gastos, até o impacto atingir o topo, no literal significado da palavra. Lydio experimentou talvez pela primeira vez, a elevação que desejava e o destino que procurava no território de um sonho: tornar-se proprietário do ateliê de pintura. A amplidão, o cheiro das tintas e linhaças, a quantidade de cavaletes e telas e os muitos artistas que já admirava, todos ali reunidos, construíam a visão que perseguia para viver a sua realidade. Quando, tempos depois, o prédio é vendido com todos os apartamentos, pois Manoel Santiago não queria que ele fosse desmembrado, Lydio já ocupava o ateliê como locatário e nesta condição continuaria até que, o novo proprietário concordasse em vendê-lo, separadamente, para ele. Walmir Ayala descreveu o sentimento que o dominava quando entrava naquele ateliê, era “como que invadindo um porão do tempo”.

Hoje, aos 84 anos de idade [2013], Lydio Bandeira de Mello prossegue fiel aos seus ideais, em que se destaca o gosto pelo ensino da arte, paralelamente à produção de suas obras. O lugar é o mesmo, mas ele é o proprietário, conforme sonhara no passado. Diariamente refaz o percurso, subindo os quatro lances de escada, pisando sobre os mesmos degraus que ainda guardam o peso de muitas outras pisadas. Ele vai ao encontro de seus alunos e de sua arte. Ao todo estão registrados cerca de 70 estudantes divididos em grupos. As aulas acontecem uma vez por semana em duas manhãs, duas tardes e uma noite. Além destes grupos, muitos estão na fila de espera, aguardando vagas para freqüentarem o ateliê.

Lydio possui uma sólida formação e muita prática nos mais de cinqüenta anos de ensino, em que vem fabricando suas tintas e passando este conhecimento aos jovens artistas. Para explicar o uso da cor ele monta uma espécie de mesa de banquete, e oferece à degustação de mãos menos desgastadas pelo tempo que as suas, as tintas que garantem a concretude da obra. Sobre a mesa ele alinha pós, bastões, pequenas vasilhas, cera e ensina como tudo isto só se completa com as mãos e pode ser materializado se houver em nós uma despensa para guardarmos nossas idéias, lidas ou ouvidas, vividas ou sonhadas, reais ou ilusórias. Enquanto ensina ele discorre sobre este ou aquele artista, transmitindo aos jovens uma História da Arte que se atualiza na prática de seu ensino.

Em 1961 Bandeira de Mello recebeu o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro e escolheu a Itália, para usufruí- lo. Lydio buscou o berço clássico da arte para aperfeiçoar suas técnicas. Não é por acaso que ele domina a “pedra negra”, xisto argiloso que contém carbono e confere os tons escuros que vão do cinza foncé ao negro e foi tão apreciada por pintores e desenhistas como Rafael e Botticeli. Da mesma forma se explica o domínio da sanguínea, do pastel e da caseína.

Ao longo de sua carreira como professor da Escola Nacional de Belas Artes, depois Escola de Belas Artes da UFRJ, ele acumulou premiações e participou ativamente da vida cultural e artística da cidade. Seu ateliê tornou-se a extensão da própria EBA, ou melhor, uma fronteira em que transita diariamente, entre o passado e o presente, numa jornada integral de trabalho.

Para refletir um pouco mais sobre o ensino e a produção de obras recorremos a Thierry de Duve, que vem se debruçando sobre as mudanças de paradigmas no ensino da arte, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Ele ressalta que, no ensino acadêmico, a observação da natureza e a imitação da arte do passado fundamentavam o aprendizado do futuro artista e destaca a importância do modelo vivo, como também do desenho de anatomia, para o desenvolvimento da habilidade que vinha enriquecida pelo conhecimento humanístico.

Mas, se a habilidade podia ser sempre adquirida, o talento não, pelo menos era o que pensavam os mestres de outrora. De qualquer forma, o talento, para desenvolver-se, precisava das regras e das normas, sendo assim, a Academia deveria desenvolver e normatizar o talento dos estudantes.

Quando as vanguardas levantaram seu brado, saudando os novos tempos, ainda segundo Thierry de Duve, “a pintura e a escultura afastaram-se progressivamente da observação e da cópia de modelos exteriores e se voltaram para a observação e imitação de seus próprios meios de expressão.” Como consequência o ensino da arte foi afetado pela vanguarda. “A figura do homem – medida universal de todas as coisas da natureza foi descartada como modelo externo de observação e recuperada como princípio interno subjetivo.”

Lydio Bandeira de Mello, tendo cursado a Escola Nacional de Belas Artes e experimentado a formação acadêmica rigorosa, tornou-se um artista que, sem desprezar a regra e a norma libertou-se aos poucos do seu jugo. Ele conhece a figura humana e percebe sua anatomia com uma visão de Raios-X, cada osso oculto sob a pele e cada músculo que se distende ou se contrai. Contudo, a figura humana não resulta mais da observação externa da modelo que posa, mas ela está recuperada pela modelo interna e subjetiva, princípio este que está mais próximo dos pressupostos vanguardistas do que dos acadêmicos.
A pintura é para Lydio a materialização das idéias lidas ou ouvidas, sonhadas ou vividas, reais ou hipotéticas. Seus tipos surgem no gesto, no brilho do olhar, na paisagem percorrida ou na que nunca foi vista, mas que possui existência anímica.
O ensino de arte que Lydio vai adotar em seu ateliê seguirá os princípios da liberdade individual, pois o artista defende que as imagens não estão fora e sim dentro de cada um. Ele conhece o caminho das figuras, que saem do quadro ou voltam para ele. Cabe a cada um, independente de seu mestre, descobrir este percurso. Para ele, os caminhos estão abertos entre vales ou sulcados na terra de onde emergem com os homens.

A distância do mestre da Escola de Belas Artes para o que hoje ensina no ateliê das Laranjeiras passa por estas observações. Sem ter que se obrigar a avaliações quantitativas das qualidades técnicas do discipulado para conferir grau ao estudante, Lydio extinguiu o plano de curso a ser desenvolvido e instaurou o planejamento individual. Assim, cada aluno pode desenvolver-se num tempo próprio, chegando ao limite de suas potencialidades sem estar obrigado a cumprir um número fixo de semestres em seu aprendizado.

Não está muito distante deste pensamento o que nos propõe Thierry de Duve. Ele examina dois modelos de ensino da arte que se contaminam e se dividem pelos conceitos adotados e diretrizes firmadas: o acadêmico e o da Bauhaus. No primeiro se cultiva a imitação enquanto no segundo a invenção. Contudo, para Thierry os dois estão obsoletos. Para ele, o primeiro modelo, calcado na imitação buscava a continuidade a partir de processos reprodutivos das obras de arte. Já o segundo modelo, o da Bauhaus privilegiava a invenção, conseqüentemente, a diferença e, portanto, a novidade. Mas o modelo da Bauhaus ainda funcionaria hoje? Seria ele útil na atualidade?

Em sua obra “Fazendo escola (ou refazendo-a)” de Duve propõe outra direção, de natureza essencialmente anti-acadêmica. A alavanca principal seria a reflexão sobre o próprio ensino, tendo como ferramentas a História da Arte e a Estética, por exemplo.

Não podemos afirmar que esta seria a alternativa de Lydio em sua visão de ensino no ateliê das Laranjeiras. Contudo, ele também se afasta do rigor acadêmico. Seus desenhos e pinturas evidenciam a supremacia da figura humana, entre outros temas figurativistas abordados, e que resultam no conflito do homem no mundo, e isto envolve todos os seres vivos ou fantasmagóricos que possam ser pensados. Lydio está inscrito no rol dos filósofos, como era seu pai, razão pela qual ele defende que, ao desenhar ele pensa, e vice versa, pois a linha que contorna e modula a figura está programada pela mente. A memória é o fundamento das imagens, portanto, cada aluno que entra em seu ateliê deve ser desenvolvido até o ponto de ser capaz de chegar, sentar e criar sem precisar de referências visíveis e tangíveis.

Por outro lado, isto não elimina o uso da modelo que posa, emprestando seu corpo para o exercício do pleno domínio da forma pelos iniciantes. A modelo é o parâmetro necessário à apreensão da figura humana, razão pela qual ela deve estar ali, na pose escolhida. Mas a reflexão é fundamental. Ao refletir, o aluno é capaz de tirá-la da sua imobilidade, revolucionar o espaço que ela ocupa e fazê-la retornar à sua pose. Para Lydio, o tempo e o espaço são fundamentais na definição do artista. O corpo, como já afirmava Bergson, faz a mediação entre o passado e o futuro. Estendido no espaço ele permite que o presente recomece incessantemente. Ao mesmo tempo ele conjuga ações e sensações. Por esta razão Bandeira de Mello mantém a modelo, a pose, e a necessária experiência de desenhá-la para obter o domínio da figura humana, pontos que ele não elimina de suas aulas.

Mas sua didática é especial. Como artista ele é um visionário, transitando entre a liberdade interior dos expressionistas e a contenção canônica dos clássicos. Como professor é um liberal, entendendo que ensinar é desenvolver a individualidade de cada um, despertando o que existe de particular que caracterize aquele artista e contribuindo para que se forme a identidade do discípulo. Ensina-se a técnica, segundo Lydio, e promove-se a liberdade, porém, uma liberdade vigiada, pois cabe ao professor oferecer contribuições de soluções possíveis, sem determinar qual delas será a que deva ser escolhida.

Para atingir seu objetivo Bandeira de Mello trabalha junto com os alunos em seus próprios projetos, como se fosse apenas mais um estudante no ateliê, posto que seja ele mesmo, o mestre. Assim é possível falar de artistas e tempos, de modos de solução adotados ao longo dos períodos da História da Arte, aproximando-se de Thierry de Duve na medida em que utiliza a História da Arte e a Estética, além da Filosofia como ferramentas para pensar o próprio ensino que realiza.

É possível, então, apresentar o esfumato como desenho, não como simples passagem de uma cor para outra ou da criação de efeitos de claro e escuro, em que a linha da sombra se esvai como a fumaça, mas o esfumato determinando as formas, construindo as figuras com o uso de “meias tintas”. Também é possível efetuar o desenho a nanquim utilizando uma espécie de aerógrafo, cânula que leva o ar e esparge a tinta sobre o papel pelo sopro do artista. Lydio acrescenta. “O sopro se associa a emoção”. Para ele o resultado é muito mais expressivo.

Enquanto realiza suas obras, algumas por encomenda, mas, em sua grande maioria, pelo despertar de uma proposta que o leva a pensar o mundo, o homem e a fantasiosa imaginação humana que se oculta nas sombras de cada artista, Lydio esboça, pensa, desenha, fala, ouve sua própria voz, recolhe as observações dos alunos, contesta, justifica, esclarece e cria. São muitos êxodos, pois a insatisfação do homem é permanente. São muitas solidões que devem ser curadas, como a do homem e seu cão. Enquanto o primeiro se oculta em seu casaco, enterrando-se nele para desaparecer aos poucos, o cão uiva para o alto, procurando resposta. Apenas as sombras apóiam os corpos na solidão da noite. As figuras encontram-se na fronteira da precisão acadêmica com a distorção expressionista; entre a realidade e o pesadelo.

Muitas das obras de Lydio sinalizam o recurso da abstração fora do contexto temático, no fundo da composição, mas a figura encarna o tema e garante a dramaticidade, a dor, a distorção da forma e sua intensidade, mesmo que tenha sido construída em sínteses formais.

Conforme as palavras do artista, ele vê, hoje, como num retrovisor, trazendo dentro de si um porão cheio de lembranças. É com elas que ele sobe, mais uma vez, os quatro lances de escadas do prédio das Laranjeiras e chega ao ateliê para mais uma jornada de trabalho, na produção contínua de sua obra e no exercício sistemático do ensino, pois “é preciso pintar e desenhar”. E acrescenta: “Eu existo assim”.

Referências bibliográficas: BERGSON, Henri - “Matéria e Memória” – São Paulo: Editora Martins Fontes, 1999. DUVE, Thierry de – “Fazendo escola (ou refazendo-a)” . Chapecó: Editora Argos, 2012. ______________ – “Quando a forma se transformou em atitude – e além”, in Arte & Ensaios n. 10. Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais / Escola de Belas Artes, UFRJ, 2003. LUZ, Angela Ancora e Silveira, Antonio José da – “Eu existo assim” [catálogo da exposição Bandeira de Mello / Caixa Cultural]. Rio de Janeiro: Caixa Cultural / LG Produções Culturais, 2009. http://www.bandeirademello.art.br/