bandeira de Mello

Sobre o painel da CAIXA

Em 1969, Bandeira de Mello realizou a pintura do mural do edifício-sede da CAIXA Econômica Federal do Rio de Janeiro (figura 1). Este representa a essência da pesquisa desse pintor, tanto na temática quanto nas questões formais. A temática social e a composição de caráter cinematográfico revelam muito do que foi pesquisado na época, principalmente durante o Segundo Modernismo Brasileiro. O prédio, que atualmente também é conhecido como CAIXA Cultural Rio de Janeiro, está localizado na Avenida Almirante Barroso, no Centro da cidade.

Neste painel, constatamos a essência da pesquisa do pintor – o homem – que, representado em várias cenas de seu cotidiano, assume um caráter simbólico e universal. Sua temática remete-nos a um sentido de união, na qual o homem é igual em qualquer lugar e em qualquer tempo e vive numa eterna luta pela sobrevivência, precisando se relacionar com os outros seres.

Reflete o povo brasileiro e sua cultura, não pelas roupas ou paisagens, até porque estas não poderiam ser limitadas a uma região, mas pela poética, que cria o espírito nacional, que faz com que linhas, cores e tons venham a despertar sentimentos no observador.

Na pintura, assim como na literatura, existem símbolos que instigam a imaginação. Na pintura, esses símbolos podem ser o significado da forma ou elementos puramente abstratos, como cor, mancha ou tom que, organizados, criam significados.

Para Bandeira de Mello, o que faz um grande pintor é justamente sua capacidade de relacionar esses diferentes elementos dentro de um espaço definido, harmonizando os dois aspectos – a abstração formal (manchas) e a semântica num mesmo quadro –, sem que as fronteiras entre eles sejam nítidas, ou seja, um complementando o outro.

O trato objetivo com a pintura nada mais é que o embate com seus elementos visíveis: linha, tom e cor, ou seja, o seu aspecto abstrato. Ao colocar estes elementos em funcionamento, criando ritmos, surge o poético. Segundo Bandeira de Mello: “o que faz uma pintura trágica, não é um tema trágico, mas formas trágicas”.

O edifício foi construído em 1957, após um concurso promovido pela CAIXA, sendo os autores do projeto arquitetônico Paulo C. Mourão, J.A. Tiedemann e Ney F. Gonçalves. Em 1969, terminada a construção do prédio, a CAIXA promoveu um novo concurso para um grande mural em seu interior. A comissão julgadora era constituída pelos arquitetos responsáveis pelo projeto do edifício, por Thales Memória (diretor e professor da Escola de Belas Artes), Max Newton Bezerra (representante da administração da CAIXA), Sergio Lazaro Dantas (representante do grupo de trabalho da nova sede) e pelo pintor e critico Quirino Campofiorito (cujo nome teve maior votação processada dentre os concorrentes para representar a critica de arte.

Apresentaram-se 33 correntes dos 113 inicialmente inscritos, sendo o vencedor escolhido por unanimidade. O resultado do concurso foi: em 1° lugar usando o pseudônimo “o Mineiro”, Lydio Bandeira de Mello, recebendo o premio no valor de Cr$ 30 mil, em 2° lugar Lorenz Heil, com o pseudônimo Cosmo, recebendo Cr$ 15 mil e em 3° lugar, Jose Cesar Branquinho, com o pseudônimo Mafura, recebendo Cr$ 5mil.

O projeto de Bandeira era composto de duas superfícies planas, verticais, cada uma com 32 metros de comprimento por 4 metros de altura, perfazendo um total de 250 m2. A estrutura era feita de 80 placas de “madepan”, de dois metros de altura por um metro e sessenta de largura, montadas sobre chassis de cedro. O ajuste entre as placas obedecia ao sistema de pinos e eram fixados por parafusos de latão, em tirantes de madeira que, por sua vez, eram presos a buchas embutidas na parede. O preparo do suporte foi feito com têmpera branca de caseína. Bandeira de Mello tinha como auxiliares os pintores Murilo Guimarães (atualmente professor da Escola de Belas Artes) e Julio César Saraiva (figura 3).

A composição da pintura se integra a arquitetura interior do grande hall do edifício moderno. Contudo, uma pintura mural não deve ser apenas um elemento decorativo, mas poético. Segundo Bandeira de Mello,

"O mural não é tão somente um livre jogo de formas, com a única intenção de proporcionar um prazer à vista. Para mim é mais que isto: o muro escolhido como suporte deve ter sua superfície impreg¬nada de força expressiva, rica de apelos visuais e táteis, que reflitam o relacionamento entre o artista e o mundo, e passe a funcionar como uma forma de linguagem. Na realização da obra de arte o artista estabelece símbolos para representar o mundo levado à sua consciência; na apre¬ciação da obra de arte, o espectador, conduzido por ele, leva também à sua consciência os problemas da existência enfocados pelo artista. Todo indivíduo tem dentro de si um mundo que nasce e morre em silencio, se ele não se utilizar da linguagem formal para exprimi-lo. Uns são capazes de tomar consciência dele e revelá-lo, outros aguardam que alguém os desperte para o problema. (...) Num edifício público, o pintor muralista tem sua maior oportunidade, e não deve se ater apenas aos aspectos formais, que fazem com que ele guarde respeito aos espaços físicos e psicológicos criados pelo arquiteto, mas que, através destes mesmos aspectos formais, exponha as idéias que julga importantes para a comu¬nidade."

Assim, o autor de uma pintura mural deve refletir sobre as características do local, do público, do tipo de observação que será realizada. A temática também deverá estar relacionada com contexto do local. Na CAIXA, o artista escolheu o painel como suporte, uma pintura não estrutural, aposta em lugar do afresco, devido às condições dos edifícios atuais, que apresentam sistemas hidráulicos e elétricos por dentro das paredes. Estas não são mais essencialmente estruturais. Sendo assim, o painel apresenta a vantagem de poder ser removido para alguma eventual necessidade.

Quanto à temática, o artista optou pela relação entre o homem e a terra, por meio do trabalho, das artes e das relações humanas e, diferente de muitos artistas de sua época, sem qualquer alusão à máquina. A composição é constituída por grandes massas de luz e sombra que nos ajudam tanto a perceber a obra como um todo, quanto a ambientar cada cena do grande painel, como explica a historiadora Maria Heloisa Martins Dias, em relação à composição de alguns pintores expressionistas: “A narrativa se constitui de uma sucessão de quadros, quase sempre autônomos, seguindo um ritmo atemporal e descontínuo, iluminam-se os instantes, plasticiza-se o imóvel; o argumento se esgarça em favor de telas/quadros de intensa expressividade. Da mesma forma que no cinema e no teatro expressionistas, as luzes e reflexos acentuam os contrastes e o efeito dramático visual.”

Quando vemos a obra de longe, temos uma impressão geral, grandes massas de claro e de escuro, que determinam a estrutura, a unidade da obra e que tem um significado próprio. Aliás, foi esta impressão geral, a inicial, quando a obra foi criada. Vale lembrar aqui uma passagem contada pelo artista Fernando Pamplona, quando visitou Portinari, em sua juventude, durante uma aula da Escola de Belas Artes. Ao ver uma pequena placa comprida, com formas geométricas pintadas em amarelo, sépia e cores em terra apoiada sobre um cavalete, Pamplona indagou ao artista: “Portinari, você também faz pintura abstrata?”, e o pintor respondeu “Toda arte é abstrata!” e continuou “isto é apenas o estudo inicial de composição para uma pintura de Tiradentes.” É muito comum na pintura, e isso desde a antiguidade, iniciar a composição pensando o todo, as formas. Depois são realizados vários estudos separados das partes, adicionando aos poucos o figurativo dentro desta estrutura abstrata. É lógico que muitos são os processos de criação, e cada artista tem o seu, mas o pensamento formal sempre existiu e está implícito na semântica.

Aproximando-se da obra, a média distancia, percebemos as cenas isoladamente, na qual as figuras se apresentam em tamanho natural. Somos conduzidos a passear por elas por meio de ritmos e direções compositivas com um caráter quase cinematográfico. Ao pararmos diante de uma cena, a necessidade de chegar mais perto da obra é inevitável. E aqui, a curta distancia, percebemos as variações de textura, os empastes da tinta a óleo, o fundo que respira nas áreas de sombra, os efeitos de pontilhado da tinta que foi borrifada pelo soprador do artista, e os grafismos das pinceladas. Efeitos capazes de despertar nossa sensibilidade tátil. Bandeira costuma utilizar um soprador em seus trabalhos, normalmente para criar uma textura no fundo, ou como uma espécie de velatura. E difícil imaginar que o artista borrifou 240m2 com apenas um pequeno soprador. No entanto, não é apenas isso que faz o trabalho ser magistral, mas sim o conjunto de muitos fatores que compõe a obra, como os instrumentos de uma orquestra. Certamente o que mais nos impressiona é a intensidade poética das imagens, que tem o poder de nos tocar profundamente, nos fazendo vivenciar emoções, vividas ou não, mas sempre renovadas. A obra é carregada de musicalidade, seja pelas linhas fluidas que lembram o som de um violino, pela cadencia de ritmos de cores que lembram tambores, seja pelos contrastes de luz e sombra, que lembram o arranjo de uma orquestra.

É difícil relacionar a obra a uma única influência, pois o trabalho tem uma marca muito característica do artista. Podemos sentir a presença dos pintores italianos do Renascimento, somada as pesquisas modernas de seu tempo. As linhas fluidas muitas vezes nos lembram Botticelli, os contrastes de valor nos lembram o barroco de Rembrandt, as distorções das figuras e a temática nacional do trabalho nos lembram o realismo social de Portinari e de Van Gogh, e a composição que deixa aparente as linhas estruturais da composição, reforçando os ritmos, refletem muito do que foi pesquisado na época. Sendo assim, é impossível estabelecer o artista em uma única escola. Suas composições e criações são todas criadas de memória, sem o auxilio de fotos ou referências. O que é nítido em seu trabalho são suas vivências do cotidiano, que se refletem claramente em sua pintura. Sejam as lembranças de infância por meio das paisagens mineiras e das boiadas, sejam as pescarias no Rio de Janeiro. O pintor Antonio Silveira uma vez, em uma palestra, comentou: “as primeiras velaturas que Bandeira viu, foram das terras do chão e das estradas sobre as árvores e casas de Minas.”

Em 1973, um grande incêndio destruiu uma parte do edifício e consequentemente o mural do artista. Quirino Campofiorito, um dos membros da banca do concurso, escreveu na época sobre a grande tragédia:

"O imenso prejuízo causado peto incêndio na sede Central da Caixa Econômica Federal, arrasta a destruição de uma das obras expressivas da nossa pin¬tura moderna. O mural realizado pelo pintor professor Lydio Introcaso Bandeira de Mello, foi totalmente perdido, dado que nada restou do inte¬rior do amplo térreo e sobreloja. Situava-se essa valiosa pintura na parede de fundo, que se estendia para os lados e para o alto na medida toda em que se abre o espaço ligando ambos os pisos, perfazendo um imponente vestíbulo, ao mesmo tempo em que compreende áreas de serviço para atendimento do público. Com matéria mais resistente, parece que o vitral que perfaz a parede da fachada do andar térreo para a av. Rio Branco, muito pouco terá sido afetada pelo fogo. [...] É profundamente lastimável a perda dessa imponente obra em todos os sentidos equivalendo-se às maiores realizações do gênero no Brasil, den¬tre as quais os melhores exemplos são os tetos do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e o mural do palácio Pedro Ernesto, pintado por Eliseu d’Angelo Visconti (1866-1944), e os murais de Candido Portinari (1903-1962) para o Palácio da Cultura do MEC e para a ONU em Washington (murais Guerra e Paz). É triste o prejuízo que acaba de ter a pintura mo¬derna brasileira com o desaparecimento dos murais de Lydio Bandeira de Mello. Mas tudo indica que o prejuízo possa ser desfeito, desde que, com a recuperação do edifício da Caixa Econômica Federal, seja chamado novamente o artista para refazer sua obra, que lhe coube executar por direi¬to adquirido, repetimos, em concurso público”.

Em 1974, o artista reconstruiu a obra, tendo que modificar a idéia inicial, já que desta vez os painéis seriam dispostos horizontalmente, e altura seria diminuída para 4m. Assim, foram adicionadas algumas partes para que este se integrasse harmoniosamente ao novo espaço arquitetônico.

O novo painel manteve as mesmas características do primeiro, no que diz respeito à montagem do suporte e seu preparo. Também foi pintada na técnica de têmpera a caseína com finalização a tinta óleo. Quirino Campofiorito comenta sobre o processo do artista: “processo excelente, de resistência já comprovada em pinturas de mestres do pré-renascimento.” Desta vez seus auxiliares foram Roberto Rocha, um dos grandes alunos do artista e infelizmente falecido nas primeiras semanas de trabalho, Pedro Lázaro e Hélio Jesuino. A pintura é considerada a maior superfície interna ornamentada do país, e uma das maiores do mundo. Sem dúvida uma das maiores obras da historia brasileira, não em tamanho, mas em qualidade. O Painel reflete a arte e a cultura brasileira em uma escala monumental.

Rafael Bteshe
Bacharel em Pintura - EBA/UFRJ; Mestre e Doutorando em História e Crítica da Arte - PPGAV/EBA/UFRJ.

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Notas
1 “O significado da obra emerge da interação das forças ativadoras e equilibradoras”. (ARNHEIM [1904] 1998, p.29)

As citações deste texto foram retiradas de entrevistas com Bandeira de Mello e de documentos do arquivo pessoal do artista.
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