bandeira de Mello





Pintura Mural: alguns apontamentos sobre história e técnica

As primeiras manifestações do muralismo

A pintura mural ou parietal, desde os tempos mais remotos, era considerada uma forma privilegiada de registrar os conhecimentos e crenças, e assim transmiti-los não só aos outros membros da comunidade, mas as gerações futuras. É uma forma de arte pública, com estreita relação com a arquitetura. Suas principais características são: sua permanência, já que faz parte da estrutura do edifício; seu acabamento fosco, o que lhe possibilita ser contemplada de qualquer ângulo e como um todo; e sua relação com o contexto onde está inserida.

A principal técnica do muralismo é o afresco, ou buon fresco, que consiste em pintar sobre uma parede de argamassa de cal, ainda úmida, com pigmentos diluídos em água. As partículas de pigmento tornam-se cimentadas à cal da superfície, do mesmo modo que as partículas de cal se ligam entre si e com a areia. É uma pintura que está intrínseca à estrutura da parede.

Os afrescos mais antigos encontrados são do período minóico, de aproximadamente 1500 a.C., na decoração das paredes do Palácio de Cnossos, na Ilha de Creta, na Grécia. Posteriormente, os etruscos e a civilização italiana de VII a.C continuaram esta prática por influência dos antigos gregos. Estes trabalhos foram descobertos em 1749, quando arqueólogos escavaram a cidade de Pompéia, que havia sido destruída pelo vulcão Vesúvio em 79 d.C. Além do buon fresco, essas civilizações também costumavam pintar em secco, isto é, sobre a argamassa seca anteriormente colorida pelo afresco, por meio de têmperas, que tinham o caráter de decorações de templos e edifícios públicos.

Os escritos de alguns cronistas da época, como Vitrúvio (I a.C), Plínio (I d.C) e Pausânias (115 - 180 d.C.) revelam os nomes de alguns artistas como Polignoto de Tasos (século V a.C), Apeles (IV a.C) e Protógenes(IV a.C), mas sem entrar em detalhes sobre a técnica. Em países orientais também era comum a aplicação de pigmentos sobre a argamassa úmida, tendo contudo um caráter mais religioso. Encontramos exemplos na China Ocidental e na Índia, com pinturas budistas pintadas em cavernas.

Durante a Idade média, a têmpera foi a técnica de pintura predominante, ao lado dos mosaicos e dos vitrais e somente nos primórdios do Renascimento, o afresco voltou a ser praticado. As pinturas cristãs, dos séculos XIII e início do século XV, foram de grande importância na pintura mural. Este foi um momento que inspirou gerações de grandes mestres. Poderíamos citar dezenas de nomes, entre os principais estão: Cimabuê (1240-1301), Giotto (1266-1336), Fra Angelico (1387-1455), Masaccio(1401-1428) e Piero della Francesca (1416-1492). Por volta de 1437 surgiu o primeiro escrito aprofundado sobre a técnica do afresco, realizado por Cennino Cennini denominado “O Livro da Arte”. Cennino havia aprendido com Agnolo, que por sua vez havia estudado com Taddeo Gaddi, discípulo direto de Giotto.

No Renascimento, seguindo os passos dos antigos mestres, aparecem então artistas que vão desenvolver a técnica do afresco de forma monumental, como Michelangelo e suas pinturas na Capela Sistina, assim como Rafael, nas Câmaras do Vaticano. Nesta época, também surgem escritos sobre a técnica registrada por Vasari.

Após o Renascimento, a técnica deixou de ser praticada em grande escala, somente retornando com força no século XX, com a vanguarda mexicana e italiana, assumindo um caráter político.

O muralismo em terras brasileiras

No Brasil, o muralismo demorou a ser praticado. Talvez pelo caráter provisório de suas construções e planejamentos urbanos, não teve expressão durante o período colonial. A tradição de pintura era a técnica óleo sobre madeira nos retábulos e tetos das igrejas. No período do Império, começam a ser executadas as pinturas históricas em grandes dimensões, mas também sem relação com o muralismo, se manifestando com grandes telas pintadas a óleo.

Apenas no século XX o muralismo ganha força. Por sua ligação com a arquitetura, acompanhou os principais momentos da história do país, como o crescimento do Rio de Janeiro no início do século XX - com as pinturas de Visconti no Teatro Municipal - e o Modernismo, na década de 30, com as pinturas de Portinari no Ministério da Educação e Cultura, atual Palácio da Cultura Gustavo Capanema. Em 1969, Bandeira de Mello executa o imenso painel da CAIXA, refletindo o povo e arte brasileira em uma escala monumental. Também vale destacar os dois afrescos realizados pelo artista, em 1962, na Itália, no importante Santuário de Poggio Bustone, em uma Ermida construída por São Francisco de Assis em 1209, considerados uma das grandes obras brasileiras em âmbito internacional.

Quirino Campofiorito comenta sobre a obra do artista: “Obra de relevante fôlego artístico, de que se desincumbiu um jovem artista brasileiro no estrangeiro e precisamente num gênero raramente tratado por nossos pintores dentro da severidade que lhe compete. Com esses murais da igreja italiana e os imensos murais da Caixa Econômica Federal (Rio), Bandeira de Mello situa-se entre os muralistas brasileiros de maior acesso ao gênero, como Visconti e Portinari.” E complementa, mais adiante: “Deve-se destacar a condição muito especial e rara entre nossos pintores, do muralista que ele rigorosamente demonstra ser, fazendo bem nítida esta particularidade até mesmo no semblante que domina toda a sua obra de cavalete.”

A técnica do afresco

O afresco é uma pintura executada sobre o reboque úmido de uma parede, sendo assim parte da estrutura da construção. A essência da argamassa do afresco é a cal, material proveniente do carbonato de cálcio (CaCO3), e encontrado na natureza em diferentes estados, como: pedra calcária, creta, mármore e conchas marinhas. O carbonato de cálcio, assim encontrado, é submetido ao calor de 750° durante setenta horas, aproximadamente. Durante o processo, perde bióxido de carbono e se transforma em óxido de cálcio (CaO), a chamada cal virgem ou cal viva. Em seguida, a cal é misturada com água, desencadeando uma reação química, que ao expandir-se, produz uma imensa quantidade de calor, às vezes chegando a 400°C. Assim, transforma-se em hidróxido de cálcio, Ca (OH)2 , conhecida como cal extinta, cal queimada ou cal hidratada.

Depois de queimada, esta deve ser submetida à decantação, para torná-la mais cremosa e garantir que sua hidratação seja completa. O tempo mínimo é de três a seis meses, preferindo alguns afresquistas, o período de um ano. O escritor romano Plínio, do século I d.C, escreveu que os artistas de seu tempo exigiam cal que tivesse sido hidratada por três anos para evitar rachaduras na parede. A decantação faz-se por submersão da cal em água, “quando então a presença de agrupamentos de partículas por acaso não “queimadas” completam o processo, evitando-se que o mesmo venha a ocorrer dentro da argamassa, provocando pequenas explosões, abrindo mais tarde furos no painel pintado. ”

A cal decantada é então misturada à areia, formando a argamassa, que vai à parede como um reboque. A areia deve ser de rio e de grão médio, e para selecioná-la, deve-se peneirá-la duas vezes. Primeiro em uma peneira mais grossa, cujos resíduos - que ficam em cima - são descartados. Depois, numa mais fina, cujo grão aproveitado será o que permanecer na peneira. Sua função é dar corpo a argamassa, ajudando a sustentar os cristais de carbonato, e evitar seu encolhimento durante a secagem. Alguns pintores trocam a metade da quantidade de areia por pó de mármore a fim de conseguirem um efeito mais luminoso na pintura.

Antes da aplicação do reboque, a parede deve estar na alvenaria, uniforme e limpa de impurezas e gorduras. Sempre antes da aplicação da argamassa, a camada anterior deve ser umedecida, para que a massa não perca sua água para o muro. A primeira camada é formada com a proporção de uma parte de cal para três de areia, tendo a espessura de dois centímetros. Sua superfície deve ser plana, porém áspera, para que haja retenção mecânica para a segunda camada. A primeira camada era chamada pelos antigos pintores de trullisatio, que adicionavam pequenas britas na mistura.

Depois de colocada na parede, tem início o processo de carbonação quando o dióxido de carbono, presente no ar, é reabsorvido pela cal, combinando-se lentamente com o hidrato de cálcio da superfície. Assim, esta tende a voltar ao seu estado primitivo, ou seja, o carbonato de cálcio¬ – Ca(OH)2 + CO2  CaCO3 + H2O. Segundo o restaurador Edson Motta, esse processo de carbonação continua lentamente por milênios. “Em realidade, não há penetração das tintas na argamassa, mas um simples processo de recristalização, quando os pigmentos aglutinam-se a superfície do muro.”

A segunda camada, chamada pelos italianos de arriccio, segue a proporção de duas partes de areia para uma de cal, devendo ter 1,5 cm de espessura. Alguns artistas pintam nesta segunda camada, enquanto outros preferem pintar em uma terceira, conhecida como arenato ou intonaco, tendo esta última a proporção de 1/1 e a espessura de 0,5 cm. Bandeira de Mello prefere pintar na segunda camada, pois acredita ser a terceira camada mais propensa a rachaduras.

O tempo de secagem do reboque varia de acordo com as condições locais de umidade atmosférica, temperatura e vento. Demora em média 8 horas em condições normais, tendo o afresco de Poggio Bustone, realizado por Bandeira de Mello, secado em três horas.

A pintura deve ser feita por partes, já que existe um tempo de secagem do suporte. Assim costuma ser feito um projeto para auxiliar na rápida execução da pintura. Um primeiro estudo de composição na escala de 1/5, um cartão na proporção de 1/1, onde são estudadas minuciosamente as partes, e um papel de transporte para auxiliar na marcação do desenho na parede. Para esta última etapa eram usadas, no renascimento, a carta de spolvo ou o método de decalcar o desenho com um estilete de madeira, sem chegar a cortar o papel, apenas fazendo um sulco na massa ainda úmida. Também costumavam quadricular a parede antes de transferir o cartão. Outros artistas faziam a marcação diretamente sobre o afresco, com uma tinta de cor vermelha misturada com um pouco de cal, técnica conhecida como sinopia.

O excedente, que não for pintado, deve ser removido ao fim do dia, com um corte chanfrado, para facilitar a aderência da argamassa nas juntas, ao ser aplicado no dia seguinte.

Os cortes ou emendas são normalmente executados nos contornos das figuras ou em locais adequados para tornar estas juntas tão invisíveis quanto possível, se integrando a composição. Os pintores destros costumam começar a pintura da parte superior esquerda para a direita, para evitar respingos em uma área já pintada.

Os pincéis devem ser macios para não agredir a argamassa e, assim como na aquarela, reterem a tinta e ajudarem na sua condução. Costumam-se serem usados pincéis de cerdas longas e flexíveis como os de pelo de marta.

Os pigmentos devem ser resistentes a alcalinos, e o pintor deve levar em conta o fato de algumas cores sofrerem alterações devido a sua transparência e o ao poder de clareamento da cal sobre elas, como acontece com o azul de cobalto e o azul ultramar respectivamente. “Esse inconveniente do ultramar era contornado pelos antigos mestres, que usavam lápis-lazúli, aplicando-o sobre um fundo previamente preparado com tinta preta; sobre este, a cor azul era usada a têmpera.” Neste caso, um acabamento a secco. A permanência da cor está relacionada ao grau de pureza do pigmento, assim como sua estabilidade em relação a agentes externos.

Os pigmentos mais utilizados são: o branco san-giovanni, citado por Cennino Cennini em seu Il Libro del Arte, que é a própria cal seca, uma mistura de hidrato de cálcio e carbonato de cálcio; o preto de marte, de marfim e vegetal; o vermelho óxido de ferro, marte, terra e vermelhão francês; o azul cobalto, cerúleo, ultramar, ftalocianina e manganês; o amarelo marte, ocre e cádmio; o violeta de cobalto e marte; o verde terra, óxido de cromo verde, cobalto manganês e ftalocianina e o terra de siena natural e queimada e terra de úmbria.

Conforme já explicado, no afresco a tinta adere ao suporte por um processo de cristalização, o pigmento é simplesmente misturado com água e assim é levado à argamassa fresca. É ali que se processa a aglutinação.

O afresco possibilita uma grande riqueza de efeitos, desde transparências como na aquarela, a opacidades como nas têmperas. Também se podendo trabalhar com a tinta mais pastosa. A técnica mais comum é a de hachuras, por razões técnicas e ópticas, já que são aplicados traços únicos evitando o desgaste da massa. Outra qualidade da técnica é o fato de poder ser observada de qualquer ponto com a mesma visibilidade, sem reflexos, além de ser lavável.

Atualmente este tipo de pintura caiu em desuso, principalmente devido à arquitetura moderna, na qual as paredes não são mais estruturais, mas apenas divisórias de ambientes. O fato de existirem sistemas hidráulicos e elétricos dentro dessas paredes afasta a escolha desta técnica. Outro fator é o efeito prejudicial dos vapores ácidos, fuligem e fumaça das grandes cidades na pintura afresco. Estes causam abrasão, reações químicas, dissolução da argamassa e podem penetrar na pintura.

O afresco está ligado à idéia da permanência, o que não é uma característica da vida moderna. Para executá-lo é necessário exímio conhecimento técnico, disponibilidade de material próprio, local que se adéqua a realização da obra e tempo para realizá-la. A construção de uma igreja levava gerações, pois não havia prazo exíguo para conclusão, apenas a dedicação a um ideal maior.

Assim, atualmente, tem se utilizado o painel removível, em lugar do afresco, como fez Bandeira de Mello no prédio da CAIXA, no Rio de Janeiro.

No entanto, da mesma maneira que surgiram empecilhos na construção do afresco, também foram desenvolvidas técnicas para contorná-los. Por exemplo, a construção de uma câmara de ar por trás do muro onde será executada a pintura, de modo a protegê-la da umidade. Estando o afresco em lugar interno, controlado por sistemas de refrigeração, também estará protegido da poluição das cidades.

Cabe destacar que ainda existem pinturas com mais de 3.000 anos, atestando sua durabilidade, e que as possibilidades no afresco, são muitas, algumas únicas, sendo assim um instrumental precioso na arte da pintura.

Rafael Bteshe
Bacharel em Pintura - EBA/UFRJ; Mestre e Doutorando em História e Crítica da Arte - PPGAV/EBA/UFRJ.

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Notas
1MOTTA, Edson.
Iniciação à pintura por Edson Motta e Maria Luiza Guimarães Salgado. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1976.
2 No site www.theoi.com/Text/Pausanias1A.html existe um tradução de seus textos para o inglês.
3 CAMPOFIORITO, Q. Revelações da obra de Lydio Bandeira de Mello. Jornal de Letras, Rio de Janeiro, 1º caderno- Artes Plasticas, Jun. 1978.
4 MOTTA, Edson. Iniciação à pintura por Edson Motta e Maria Luiza Guimarães Salgado. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1976.
5 Ibdem
6 Spolvo, do italiano pulverizar, colocar pó, está relacionado a técnica de perfurar os contornos do desenho feito no cartão ou no papel de transporte, encostá-lo sobre a argamassa úmida, e com um saquinho de musselina (uma boneca de pano) recheada de pigmento, ir batendo suavemente, de modo a fazer com que o pigmento passe pelos pequenos buracos do papel marcando o muro com o desenho.
7 Sinopia é o nome de um pigmento avermelhado produzido a partir do óxido de ferro contido em um tipo de quartzo chamado Sinopita, Sinople ou sinopla. Tem seu nome derivado da cidade turca de Sinop, onde é frequente. Foi descrita por Cennino Cennini em seu tratado de pintura. Também se refere à técnica de desenho-base feito com esta tonalidade, em telas ou na base de afrescos, muito comuns nas pinturas do Egito Antigo e nas pinturas romanas.
8 MOTTA, Edson. Iniciação à pintura por Edson Motta e Maria Luiza Guimarães Salgado. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1976.
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