bandeira de Mello

Sobre os afrescos de Bandeira de Mello no Convento de San Giaccomo em Poggio Bustone

Em 1961, Bandeira de Mello obteve o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro do Salão Nacional de Belas Artes, hoje extinto. Concorreu com três quadros, um dos quais o retrato de seu irmão Luiz, pintado em técnica mista de têmpera e óleo sobre madeira (fig.1). Este prêmio era o mais cobiçado do evento, porque dava recursos para o artista permanecer por dois anos no estrangeiro.

Fig, nº1

Bandeira optou por se fixar na Itália e estudar os grandes muralistas que viveram entre o fim da Idade Média e o início do Renascimento. Dos dois anos vividos na Europa, um deles foi dedicado à feitura de dois murais. São afrescos pintados nas paredes da pequena igreja do Convento Franciscano de San Giaccomo, situado em Poggio Bustone, lugarejo encravado nas montanhas que circundam o Vale de Riete - Vale Santo - e que fazem parte dos Apeninos.

Participando de uma mostra coletiva realizada na Via Marguta, em Roma, Bandeira encontrou e fez amizade com Renzzo Mateucci (fig.2), pintor italiano radicado em Roma. Renzo havia sido sondado pela Ordem Franciscana para projetar e pintar dois afrescos na pequena igreja do convento em Poggio Bustone. A capela havia sido atingida por um terremoto em 1948, que destruiu as paredes laterais da igreja, onde havia dois nichos. As paredes foram restauradas e permaneciam vazias. Renzo declinou o convite e sugeriu que a proposta fosse encaminhada ao pintor brasileiro Bandeira de Mello, conhecedor do processo de pintura mural e que vivia na Itália, na ocasião.

Fig, nº2

Bandeira teve sua formação profissional no Brasil. Entrou em 1947 para a Escola Nacional de Belas Artes da Universidade do Brasil e se formou em 1951. Na escola seus principais orientadores foram: Calmon Barreto (desenho), Quirino Campofiorito (teoria) e Edson Motta, responsável pela sua formação técnica. Edson Motta, além de grande mestre, foi o pai da restauração científica no Brasil.

Interessados no aprendizado do afresco, Bandeira, José Silveira D’Ávila e Luis Carlos Palmeiras, entre outros, começaram a fazer testes da técnica milenar nos muros do quintal de uma velha casa na Rua Correa Dutra, Catete, no Rio de Janeiro. As dúvidas eram solucionadas com consultas ao mestre Edson Motta, que segundo relatos de Bandeira, era um professor exemplar, sempre preciso e generoso em seus conselhos.

Em sua última noite no Brasil, antes de partir de navio para a Itália, Bandeira, em um momento de insônia, pegou um livro para passar o tempo. A obra tratava da vida e experiências de São Francisco de Assis. O livro de Chesterton, deixado sobre a mesa de cabeceira, com a página marcada, foi a última coisa que Bandeira fez antes de sair de casa para o embarque e, por incrível que pareça, foi o primeiro objeto que tocou, quando retornou à sua casa no Brasil. O artista não imaginava que durante sua viagem, em 1962, faria duas importantes pinturas em uma igreja construída pelo Santo da Idade Média.

O convento românico-gótico construído no século XIII é conhecido por ser o primeiro local onde São Francisco se abrigou, após sua saída de Assis, e onde deu inicio à Ordem Franciscana. Com as palavras “Buon giorno, buona gente” saudou os moradores, quando entrou pela portada de Poggio Bustone, em 1208, junto com seus sete primeiros companheiros: Bernardo de Quintavalle, Pedro Cattani, Giles, Sabatino, Morico, Masseo e João Capela. Os moradores, humildes camponeses acostumados a enfrentar a dureza da vida cotidiana na aldeia isolada, foram receptivos. As terras foram doadas à Abadia de Farfa, em 1117, por Bernard de Rainald, senhor do Castelo de Poggio Bustone.

Lá, com 27 anos, São Francisco de Assis retirou-se em ascese solitária, no silêncio das montanhas, com seus primeiros discípulos. Viveu em uma caverna entre as pedras, onde um anjo apareceu, sob a forma de criança, anunciando a remissão de seus pecados: "Não se atormente, Francisco, que seus pecados serão perdoados como você pediu a Deus", também lhe foi revelada a “expansão da ordem":

– Deus fará tornar-se uma grande multidão, e propagar-se até o fim do mundo.

A partir daí, Francisco, repetindo as palavras de Cristo: "Ide, caríssimos, dois a dois, e anunciem para o povo a paz", convida seus seguidores, a trazer ao mundo as boas novas do Evangelho. Antes de partir, iniciou a construção de uma ermida, que seria terminada nos séculos seguintes, pelos seus discípulos, dando origem ao Santuário.

Os afrescos de Bandeira de Mello encontram-se na capela de San Giaccomo, no local que serve como dormitório para os monges. A última janela que vemos, no alto a direita, na figura 3, é a cela onde o pintor dormia.

Fig, nº3

No subsolo do dormitório, ainda existe o lugar onde São Francisco costumava se retirar em oração, permanecendo durante dias, sozinho, em vigília. No local, encontra-se uma cruz de madeira dentro de uma pedra partida, símbolo da Ordem Franciscana, que representa a pedra partida da tumba de Cristo, durante sua Ressurreição.

O encontro do artista com os franciscanos aconteceu em novembro de 1961, quando junto a Renzo Matteucci, chegou ao local em uma manhã fria de inverno. Foram recebidos pelos monges: Maurizio (figura 4), Cherubino (figura 5) e Agostino (figura 6), os únicos representantes da Ordem Franciscana no santuário. Após o almoço, uma grande nevasca impossibilitou-os de voltar a Roma e acabaram dormindo no convento, retornando no dia seguinte.

Fig, nº4
Fig, nº5
Fig, nº6

Bandeira fez os estudos em algumas semanas, levando-os aos monges, que por sua vez os encaminharam aos seus superiores para avaliação.

O projeto foi aprovado, os trabalhos foram iniciados na primavera de 1962 e concluídos em oito meses. O pintor passava as segundas e terças-feiras em Roma, junto à família, e os outros dias no convento. Junto aos monges, faziam as refeições na própria cozinha, ao lado do fogo. As noites eram difíceis, pois não havia calefação. Para aquecer as camas, pegavam as brasas no fogão da cozinha, colocavam no ferro de engomar, passando a cama para aquecê-la. O artista conta: “durante a noite não podia se virar, pois o resto da cama estava gelada”.

No local, Bandeira fez amizade com camponeses e habitantes do lugarejo. Jogavam bocha, sinuca, bebiam vinho da região de Viterbo, pescavam e caçavam nas montanhas. A sua rotina era levantar de manhã, muitas vezes com as mãos afetadas pelo frio e pela cal, e após a refeição matinal, iniciar a preparação da argamassa, para aplicá-la ao muro, e em seguida pintar. Às 14h, quando não era mais possível continuar o trabalho, almoçava e ia andar nas montanhas. Muitas vezes voava de planador sobre o vale de Riete, junto com seu colega Renzo Mateuti. Voltava no fim de tarde, fazia uma refeição frugal e se recolhiam à noite, depois de esquentar a cama com o velho ferro de engomar.

Para a feitura do afresco, Bandeira encontrou os melhores materiais disponíveis na região. Com o auxilio de frei Agostino, do muratore Armando e de seu auxiliar Primo, encontrou uma cal extinta , especialíssima, em um lugarejo próximo. A cal estava imersa em água há muitos anos, dentro de um buraco no chão, em um lençol freático, e, segundo o artista, parecia um verdadeiro creme devido à sua consistência gelatinosa. Os muratores trabalhavam no restauro de construções antigas da região, sendo os melhores guias do local. Em seguida, comprou areia de rio de grão médio, os pigmentos puros, pincéis de marta e os outros materiais necessários.

Durante toda a execução do mural, o artista trabalhou sozinho. Fez a primeira camada de argamassa na proporção de uma parte de cal para três de areia, com dois cm de espessura, e a segunda camada com a proporção de 1/2, com espessura de um centímetro. Vale destacar, que metade da quantidade de areia utilizada foi substituída pelo pó de mármore, a fim de conseguir uma superfície mais luminosa.

Fig, nº7

O transporte do desenho foi feito com material de risco macio e por contato. Por cima do cartão, colocou um papel transparente e copiou o contorno da figura que seria pintada. No verso deste, cobrindo as linhas com um material macio, encostou o papel no reboque, e transpôs o desenho.

Por necessidade técnica da pintura afresco, foram feitos dois pequenos estudos, na escala de 1/5, onde foi estudada a composição e no qual o artista utilizou o método de quadricular o desenho, para auxiliar na ampliação (figuras 8 e 9). Em seguida, foram feitos os cartões, na escala de 1/1, com um estudo minucioso das partes (figura 10). Finalmente, foram realizados os papéis de transporte, para manter a estrutura formal (figura 11).

Fig, nº8
Fig, nº9
Fig, nº10
Fig, nº11

A massa que sobrava, além do limite do desenho que ia ser pintado, era posta abaixo. O artista ensina que durante os retoques finais, deve-se estar atento ao grau de umidade da massa, pois, se por acaso a pintura for feita depois que a massa estiver seca, ela não mais fará parte da parede.

Um recurso para saber se o processo de cristalização ainda está em andamento, consiste em empurrar a massa contra a parede com a colher de pedreiro. Se vier à tona uma nata, significa que a massa ainda está recebendo tinta, já que os cristais de carbonato de cálcio ainda estão se formando.

As pinturas cobrem dois nichos na parede lateral do Convento de San Giaccomo (figuras 12 e 13). O tema do primeiro mural é a confissão pública de São Francisco de Assis, nas vielas de Poggio Bustone, afirmando não ser santo. O segundo mural trata da anunciação do perdão de seus pecados pelo anjo e a representação poética daqueles que foram seus primeiros companheiros da Ordem.

Fig, nº12
Fig, nº13

Na primeira pintura, Bandeira se inspirou em pessoas conhecidas, mas sem o auxilio de referências, apenas com as imagens que guardava na memória. No lado direito do afresco vemos três crianças. A menina de camisa vermelha é Monica, a filha mais velha do artista e a criança que acaricia o cachorro é Claudia, sua outra filha (figura 14).

Fig, nº14

Na segunda pintura, podemos ver no fundo, à direita, a vista que se tem de dentro da capela de San Giaccomo. Ao fundo está o lago que também, faz parte da vista do local (figuras 15 e 16). À esquerda, está uma das capelas do santuário que se encontra no alto da montanha, na frente dos ciprestes italianos, muito comuns na região (figura 17).

Fig, nº15
Fig, nº16
Fig, nº17

Terminado o trabalho, no fim de novembro, despediu-se dos monges e voltou para Roma. Algumas semanas depois, recebeu uma ligação e o convite para a Missa do Galo que seria realizada no local. Subiu com a família e ficou hospedado em uma pousada. A procissão saiu de noite por meio da mata coberta de neve e todos levavam velas acesas, em meio à paisagem branca. No meio do caminho, por acaso, encontrou um amigo brasileiro. Chegaram ao convento e lá assistiram a maravilhosa Missa do Galo em frente aos afrescos que havia acabado de pintar. Segundo o artista, neste momento sentiu uma emoção muito forte, uma sensação de que não tinha sido ele que tinha feito aquela pintura.

Ele afirma: “ainda que vivesse milênios, jamais esqueceria a vida que tive lá em cima daquelas montanhas.” Em uma entrevista a Walmir Ayala, na década de 70, contou:

“Foram tempos muito feli¬zes na paz daquele recinto construído pelos Franciscanos a partir do século XIII. Quando não trabalhava, me perdia pelos campos, sob um céu paradisíaco, testemunhando a vida singela e perfeita dos pastores e habi¬tantes do povoado. Havia uma promessa de transformar este trabalho que lá está intacto, em postais, o que ainda não foi feito. Mas certamente será.”

A promessa dos monges foi cumprida, e hoje os postais com as pinturas de Bandeira são vendidos como símbolo do local.

Durante sua viagem a Itália não conheceu nenhum pintor afresquista, tendo apenas recebido muitas visitas de estudantes da Escola de Belas Artes de Roma. Seus trabalhos também chamaram a atenção de Pietro Maria Bardi, organizador e diretor do Museu de Arte de São Paulo (Fundação Assis Chateaubriand) que não conhecia Bandeira de Mello, mas que, ao ver suas pinturas em uma exposição em Roma, escreveu para o crítico Quirino Campofiorito, ter encontrado na Itália um excelente artista brasileiro.

Antes de voltar ao Brasil, o artista viajou para Portugal, França e Espanha, onde se impressionou com as obras de El Greco, Grunewald, Bosch, Bruegel, Van Eyck e outros tantos mestres da Europa.

Chegando ao Brasil, fez uma série de desenhos inspirado nas touradas espanholas, reunidos numa exposição na Galeria Goeldi, dirigida por Clarivaldo do Prado Valadares, localizada na Praça General Osório, em Ipanema, no Rio de Janeiro. Todos os desenhos foram feitos de memória, processo preferido do artista, já que segundo ele, assim se expressa à essência das coisas e não detalhes que são supérfluos.

Segundo Bandeira, quando observamos um objeto ou uma cena, estes já passam por um processo seletivo, pois só prestamos atenção no que nos interessa. Quando memorizamos esta experiência, acontece um novo processo de filtração, em que também acontece uma organização das imagens observadas e vividas de uma forma muito pessoal. E por último, quando evocamos e expressamos estas imagens e sentimentos, o fazemos de acordo com nossos pressupostos.

Destacamos a importância do Premio de Viagem ao Estrangeiro para os artistas brasileiros e para o país, e expressar o grande vazio que sua extinção deixou no meio artístico.

O prêmio era uma oportunidade para os artistas que não tinham recursos para viajar para o estrangeiro e suas inúmeras histórias estão presentes no livro “Uma breve história dos salões de arte: da Europa ao Brasil”, de Ângela Ancora da Luz.

Foi criado em 1845, como um aprimoramento dos prêmios que eram distribuídos pela Academia Imperial de Belas Artes, desde 1834. Seu fundador foi Félix-Émile Taunay, diretor da Academia, com o apoio de D.Pedro II, então imperador do Brasil e incentivador das artes. Os beneficiados foram muitos, desde Vitor Meirelles (1852), Zeferino da Costa (1868), Rodolfo Amoedo (1878), Portinari (1929) e muitos outros. Estas oportunidades traziam ao país o que tinha de mais atual na época, além de possibilitar ao artista a visão das obras dos antigos mestres, fundamental em sua formação.

Rafael Bteshe
Bacharel em Pintura - EBA/UFRJ; Mestre e Doutorando em História e Crítica da Arte - PPGAV/EBA/UFRJ.

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